Introdução

Identidade fragmentada

A arte computacional é uma intrigante forma de expressão artística que combina o pensamento computacional com a criatividade do espírito humano. Naturalmente surge uma pergunta cuja resposta não é tão simples: a qual área ela pertence? Estaria ela ligada à computação, por utilizar de máquinas e um pensamento metódico e calculista? Ou, quem sabe, à arte, pois busca a mais autêntica forma de manifestação própria? A verdade é que é impossível, e improdutivo, categorizá-la em um único extremo, já que ela se nutre do que há de melhor em ambos. Infelizmente ainda é um campo que sofre de preconceitos e paradigmas justamente por buscar uma simbiose entre os opostos desse espectro dual.

É bem possível que grande parte da dicotomia existente seja devida as palavras que usamos, arte computacional, para caracterizar esse tipo de expressão artística. Ambas as palavras são perigosamente ambíguas e a definição de uma delas, "arte", é tão controversa que alguns autores questionam sua possibilidade e utilidade[1]. Usualmente são adotadas dimensões de discussões, como valor ou impacto histórico, social, ideal, conceitual, sensorial, estético e outros[2], mas devido a complexidade e fragilidade do termo, uma definição única ainda não foi construída. Deste modo iremos focar no estudo da palavra "computacional" que possui sua origem na palavra computação que, acredite ou não, não tem a ver necessariamente com computadores. Dentre diversos outros significados a computação pode ser definida como o processo de busca objetiva de soluções (saídas), utilizando de dados (entradas), através de um algoritmo que, por sua vez, é composto por uma série de instruções ordenadas. O grande problema é que essa é uma definição extremamente técnica e muitas vezes mal interpretada. A prova disso é que você pode não ter percebido, mas o maior exemplo de computação está lendo essas palavras agora mesmo: você! Ao ler qualquer texto você está recebendo informações, processando-as e criando significado. Você inconscientemente emprega o pensamento computacional na maioria de suas atividades, como quando cozinha, conversa com outra pessoa, resolve um problema matemático ou até mesmo cria um trabalho artístico. Portanto, podemos adaptar o conceito da computação para um contexto mais holístico, permitindo que ela seja colocada adjacente à palavra arte:

A computação, na arte, tem a função de assistir no processo da própria expressão artística, originada de entradas, que não são nada mais do que a subjetividade, paixão, instinto e imaginação humana, e feito através do uso de um algoritmo, sendo este a quebra do método artístico em passos bem definidos.

Ao fazermos essa reinterpretação da palavra computacional percebemos que existem um ponto chave que une os dois universos, o processo, constantemente referenciado durante todo este livro. Talvez seja nesse aspecto que, supostamente, exista a ânsia de se separar o artista tradicional de um computacional, afinal o primeiro ainda é visto sob as lentes do romanticismo: um gênio solitário de aura mística cujas obras surgem sem esforço. Essa mentalidade é reforçada pelo fato de que o artista tradicional não precisa[3], conscientemente e abertamente, fragmentar sua arte em passos, uma vez que ele é o próprio autor de sua obra final. A maior parte desses preconceitos foram desmistificados ao longo dos anos, em especial, pelo movimento americano denominado process art, no qual os processos, métodos e a racionalização artística possuem um foco maior do que a obra de arte em si[4]. Assim como seu par, o artista computacional deve compreender profundamente o que e como ele quer se expressar, a diferença[5] é que na maioria dos casos será necessário instruir um agente, normalmente (e em nosso caso) o computador[6], para que ele possa sintetizar essa manifestação artística. A responsabilidade está dividida ente o agente criativo, a pessoa, e o agente realizador, o computador que possuí um papel essencial na arte computacional. No entanto o cerne criativo ainda permanece onde ele sempre esteve, no ser humano. E é desta forma, furtivamente, que a arte computacional encontra seu caminho, não originada puramente da lógica ou do instinto, mas sim de uma estrutura nova, que funde os dois em algo que eles nunca poderiam ser de maneira individual, a beleza da razão e a inteligência da emoção.

O gerativo

O termo arte gerativa, generativa ou procedural é muitas vezes empregado como sinônimo de arte computacional, mas existem certas diferenças que devem ser evidenciadas. São múltiplas as definições encontradas na literatura, internet ou até mesmo em explicações orais e aqui são apresentadas as mais relevantes para o entendimento das duas.

O termo "arte computacional", conforme explicado na seção passada, é usualmente encontrado no sentido incorreto de "arte de computador", fato relevado em virtude de nossa própria língua nativa. Em outros países, como os Estados Unidos, a distinção é mais evidente visto que o primeiro tipo é escrito como computational art e o segundo como computer art. De qualquer forma, estas duas expressões, definidas como obras formadas com o auxílio de técnicas computacionais ou de um computador, falham ao serem usados como classificadoras de uma composição pelo infortúnio de serem amplamente genéricas, não remetendo ao estilo, técnicas, qualidades estéticas ou ao porquê[7] (intenção do artista). Empregá-las nessa função seria similar a tentar classificar todos os gêneros e subgêneros da música utilizando uma só palavra. Algumas das categorias cobertas por elas, que inclusive podem ser parte gerativa, são arte digital, eletrônica, evolucionária, procedural, interativa e virtual dentre muitas outras.

No contexto especial da "arte gerativa", a definição mais referenciada dessa prática na literatura é a do professor e artista Philip Galanter em seu artigo "O que é Arte gerativa?" [8], posteriormente revisada pelo próprio acadêmico em uma forma mais clara, completa e sucinta no texto "O que é Complexismo?" [9]. Segundo Galanter:

"Arte gerativa se refere a qualquer prática artística na qual o artista cede o controle a um sistema com autonomia funcional que contribui para, ou resulta em, uma obra de arte completa. Nesses sistemas estão incluídas instruções de linguagem natural, processos biológicos ou químicos, programas de computadores, máquinas, materiais auto-organizáveis, operações matemáticas e outras invenções procedurais."

Note que essa definição é restrita o suficiente para não incluir todo tipo de prática artística e, ao mesmo tempo, contempla atividades originárias, e permite explorações futuras, da arte gerativa. Galanter também é cuidadoso ao evitar blindar o propósito da arte. Ele estabelece que o resultado final é uma obra completa, mas o intento continua sendo de mérito integral do campo das artes e artistas. O principal ponto de Galanter é esclarecer os mecanismos de produção de um trabalho e reforçar aquilo que realmente destaca o gerativo: a total, ou parcial, delegação do controle para um sistema que apresenta autonomia funcional. Esta última é qualificada pela independência da necessidade de decisões, ou comandos, de momento em momento por parte do artista. Você perceberá que essa mínima ação irá reverberar em consequências colossais. A maior delas é que, em vez de expressar a sua individualidade através de um único trabalho artístico, você irá gerar uma família de obras, podendo escolher candidatos que melhor representem a sua intenção.

Abrir mão de parte do processo de execução artística pode parecer contra intuitivo em um primeiro momento, principalmente quando o meio adotado neste livro é o programa de computador que é desenvolvido especificamente para fornecer uma resposta correta. Contudo, adicionar aleatoriedade e autonomia permite abrir o caminho para o desconhecido e surpreender-se com o fato de que não existe a resposta correta, e sim uma irrupção de cenários e horizontes pluralistas repletos de características inesperadas, belas e intrigantes que só podem ser reveladas pelo gerativo. Quanto a sistemas desse tipo que não usam computadores, e possivelmente nem computação, o maior de todos os exemplos é o fenômeno que batizamos como natureza, exímia em criar uma infinidade de formas, cores e detalhes através processos complexos, da emergência e também da aleatoriedade. As manchas nos pelos de uma onça, tigre ou zebra nunca são iguais. Árvores de uma mesma espécie, apesar de serem parecidas entre si, não tem a mesma forma, tamanho ou número de folhas. Até mesmo nós, em parte, somos produtos do acaso, resultante de mutações durante nossa concepção. Essas pequenas variações e incertezas que borbulham a níveis macro e microscópicos serão nossas principais inspirações para permitir que o computador, um máximo do sintético, possa produzir imagens que remetam ao caráter orgânico da natureza.

Nós, artistas

O tema da estética gerativa, no contexto da programação, possui sua base prática majoritária derivada do plano das exatas conforme você perceberá nos capítulos que se seguem. Seu segmento teórico é uma sobreposição de conceitos das ciências e arte, incluindo profundas observações e emulações do natural, estudos de estética e produção de estilo. Por uma questão de prioridades não entraremos em detalhes na área que alude exclusivamente à arte, como suas formas de manifestações ou intento. Sendo assim, cabe particularmente destacar duas explicações quando eu citar esse termo.

Primeiramente, sempre que me referir a artistas e a arte não estarei apenas indicando pessoas e obras famosas, como o pintor Picasso e sua lendária tela "Guernica". Arte é tratada, neste livro, como qualquer forma de trabalho ou expressão criativa, tais como pintura e desenho, poesia, música, esculturas, grafite, rascunhos em caderno ou até mesmo um vídeo gravado em um celular. Isso não é feito com o intuito de denegrir a arte e dizer que ela aceita qualquer coisa, muito pelo contrário, o objetivo é torná-la mais nobre anunciando que ela aceita qualquer um de nós. Em vista disso, seria muita pretensão minha rotular qualquer figura neste livro como arte. Os exemplos, por mais que projetados para explicar os conceitos, e concretizados através de uma representação estética, não passam de lições. Em uma visão artística, elas não possuem objetivo, nem impacto ou permanência.

Em segundo lugar, a definição do que realmente é arte é uma discussão para doutores no assunto e, em nenhum momento, tentarei defini-la ou restringi-la. O fator "arte", neste livro, limita-se a explicar como usar técnicas de programação para conceber padrões específicos e conferir (ou criar) efeitos visuais característicos ao seu trabalho, provendo uma visão de como o computador pode ser um grande aliado no seu processo artístico. Na realidade, arte é tão subjetiva e particular quanto a própria vida. Existem pessoas que idolatram a arte renascentista e nunca considerariam a arte moderna como "arte", e pessoas que veneram o pós-modernismo, mas sentem repulsa pelo grafite. Até o presente momento, não existe um padrão universal quantificável de qualidade para a arte que possa ser mensurável ou mesmo definido. Em última instância, assim como a beleza, a arte está nos olhos de quem vê.

 

 


[1] Adajian T. (2018). "The Defnition of art". Stanford Encyclopediaof Philosophy, Stanford, California. ISSN: 1095-5054.

[2] Davies S. (2001). "Definitions of art". The Routledge Companion to Aesthetics, New York, New York. ISBN-13: 978-0-41-532798-5. Pags.169-179.

[3] Isso não significa que ele não o faça. Cabe lembrar que a arte é um ofício como outro qualquer e pode ser aprendido ou aperfeiçoado.

[4] Grant K. (2017). "All About Process". Penn State University Press, University Park, Pennsylvania. ISBN-13: 978-0-27-107744-4.

[5] Note que esta diferença é incapaz de sustentar um argumento sólido de separação dos dois tipos de classificações. Os processos - método, lógica, execução - por trás de ambos são de mesma natureza.

[6] O computador foi utilizado apenas por conveniência. A computação pode ser empregada em diversas máquinas, agentes ou processos, sejam eles mecânicos ou biológicos.

[7] Lambert, N. (2003). "A critical examination of 'computer art'". University of Oxford, London.

[8] Galanter, P. (2003). "What is Generative Art? Complexity theory as a context for art theory". International Conference on Generative Art. Generative Design Lab, Milan Polytechnic, Milan (2003).

[9] Galanter, P. (2008). "What is Complexism? Generative Art and the Cultures of Science and the Humanities". International Conference on Generative Art. Generative Design Lab, Milan Polytechnic, Milan (2008).